quinta-feira, 24 de setembro de 2009

.ato.

Com inúmeros blocos, cadernos e papéis ao redor, ela mirou as pálpebras. Disse que era certeiro.
Não há piscada e noite de sono que eu passe sem ler seu nome, incansavelmente.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Receptáculo

Passou o mês inteiro pensando no que dizer a respeito daquela pergunta intrínseca que ela havia feito no dia chuvoso do parque, enquanto observavam os patos sentados em frente ao lago. Em alguns momentos seus pensamentos pareciam um breu que o impediam de enxergar, em outros, uma brancura insuportável, de tão nítida. Em meio a tantas antíteses e certezas ele decidiu ceder o jardim, afinal, era nele que encontrava tranquilidade.
No dia seguinte, enquanto comia cereais, ela olhou pra geladeira num momento de devaneio, avistando um bilhete anexado com o título: 'Apenas', informando como, porque, quando e onde ela deveria adubar e arrancar as folhas.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Em fendas

-Alô.
-Oi.
-Ah, oi!
-Como você está?
-Bem. Melhorando.
-Bom.
-E, você?
-Bem, também. Sinto sua falta.
-Também sinto.
-(silêncio)
-(suspiro)
-Passei no parque, semana passada.
-Nossa, há anos não vou lá.
-Caio te mandou um abraço, e pediu pra dizer que a jabuticabeira já deu frutos.
-A jabuticabeira!

-(silêncio)
-Ela está grande, bem maior que nós.
-Então, ele estava certo quando disse que ela ficaria imensa?
-Estava.
-Você, ela e eu. Crescidos, distantes e...
-E?
-Tristes. (suspiro)
-(silêncio)
-Preciso ir. Dê um abraço na Lúcia e nas crianças.
-Obrigado, mande lembranças à Rita.
-Sim, mandarei.
-Cuide-se.
-Você, também. Até.
-Até.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

reputar-se

Abriu a porta, andou até o final do corredor e abriu a outra que havia no fundo da casa. De dentro saiu uma luz que quase cegava, de tão brilhante. Jogou mel em todo o chão, deitou e escorregou de barriga, rumo à luz que vinha da outra porta. Logo que ela sumiu naquela abundância de clareza a primeira porta se fechou, lentamente.
Há muito tempo não é vista, desde o cerramento da segunda porta.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Da chegada do amor (parte II)

"Sempre quis um amor de goleadas
cuja rede complexa
do pano de fundo dos seres
não assustasse. (...)
Agora, diante da encomenda
metade de mim rasga afoita
o embrulho
e a outra metade é o
futuro de saber o segredo
que enrola o laço,
é observar
o desenho
do invólucro e compará-lo
com a calma da alma
o seu conteúdo. (...)
Sempre quis um amor
de abafar,(não o caso)
mas cuja demora de ocaso
estivesse imensamente
nas nossas mãos. (...)
Sempre quis um amor não omisso
e que suas estórias me contasse.

Ah, eu sempre quis um amor que amasse."

Elisa Lucinda. Poesia extraída do livro "Euteamo e suas estréias"

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Incidente inopinado

Clara passava todos os dias pela mesma rua, que tinha uma praça na frente, a igreja em uma esquina e na outra uma casa verde de janelas brancas que trabalhava um senhor que fazia carimbos.
No domingo, voltando do sarau, enquanto tentava lembrar trechos daquela poesia que tanto gostava, "... porque não voltar a apalpar as primeiras formas..." teve o pensamento interrompido pelos olhos surpresos e fixos na fila enorme que dobrava a esquina da igreja. Se recompôs e seguiu a fila em busca do começo, afim de desvendar o alvoroço. Quando chegou na primeira pessoa percebeu que estava em frente a casa verde. Um rapaz baixo, de óculos, saiu rapidamente de dentro da casa, esbarrando nela. Clara caiu na calçada, e em cima dela, algumas caixinhas que ele carregava. O rapaz, desconsertado, apanhou todos, se desculpou e partiu. Ela, limpou o vestido, levantou e viu no chão uma caixa que havia ficado, colocou-a no bolso e correu para alcançar, mas não conseguiu. Cansada da corrida, sentou na grama e ficou na praça observando a fila diminuir.
Após algumas horas, já em casa, lembrou da caixinha e resolveu abrir. Dentro, havia um pequeno pedaço de um tecido xadrez embrulhando um carimbo. Ansiosa, tirou-o da caixa. O desenho em relevo era um círculo pela metade, com o nome dela escrito dentro. Espantada, buscou a caixa para obter informações, no verso havia uma instrução: "Carimbo mágico - funciona somente com a outra metade." E na tampa, um aviso em vermelho: "Use somente nos olhos."