quarta-feira, 31 de março de 2010

Jas'mim'

As 8:46 ela sentava perto da máquina de café e debruçava-se no balcão, diariamente. Conforme ordens do meu patrão, eu ligava a vitrola com o vinil dos Stones exatamente as 9:00. Enquanto a música não começava, ela se mantinha imóvel, como se tivesse semeado ali mesmo há uns 10 anos. Algumas vezes cheguei a observar pelo máximo de tempo que eu conseguisse sem piscar, assim não perderia nenhum movimento, entretanto, ela permanecia como árvore sem vento. As 9:34 começava a tocar "All about you", ainda no lado A. Então, finalmente ela erguia a cabeça com os olhos inchados e marejados e pedia chá de jasmim numa xícara grande e dois guardanapos, sem torrões de açúcar. Esse ritual foi constante durante os 5 anos que trabalhei naquele café, ela se fazia tão concreta e pontual em minha rotina que já me peguei pensando no dia em que ela não aparecesse.
No dia 30 de março de 1984, acordei com náusea, dores e um mundo gigantesco e pesado sobre meus ombros. Definitivamente, não sairia de casa. Liguei no café para avisar que não trabalharia e no fim da ligação enfatizei: -Aurora, não esqueça de ligar a vitrola. Nove horas, entendeu? Nove horas! Ela respondeu com uma afirmação. Voltei a deitar e em quinze minutos estava em pé, vestido e com as chaves na mão. Parti as 8:32, cheguei no café as 8:58, liguei a vitrola e voltei pra casa.
Antes de sair, me despedi com algumas palavras no segundo guardanapo, aquele que ela nunca usava mas passava a música inteira a olhar até que eu mudava para o lado B e ela se despedia com um aceno.

domingo, 28 de março de 2010

chuva

Era papel picado caindo do céu. Abri a boca e devorei incessantemente o que pude, tinha gosto de reciprocidade
e textura de reciclagem.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Aparando agudos

Da janela via o ipê triste, tinha a impressão de um pedido de súplica ou um abraço apertado, como se ele aguardasse alguém durante anos, todos os dias, no mesmo lugar e horário. Quando florescia e perdia todas as folhas, eu chegava a pensar que estava próximo da chegada desta incógnita, mas sem demora ele ganhava aquele ar de abandono.
Na casa ao lado, há pouco tempo, havia mudado um casal e sua filha de três anos. A menina pediu ao pai para que colocasse um balanço no ipê, que sempre esteve tão só. Ela tenta ser sempre presente, salvo nos dias de muita neve ou chuva, e chega a passar horas balançando, olhando para as flores como se estivesse flutuando e o ipê retribui lançando pétalas, extirpando sorrisos dela.
Eu, já não sei se a primavera me pareceu durar mais tempo do que deveria ou se é o ipê que finalmente recebeu o alguém tão insistentemente esperado.